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“O que importa é que eles se sentem bem.”

Carlos Henrique Gluck da Silva


Por: Marta Picchioni e Henrique Gluck




Em recente pesquisa, divulgada por grandes veículos de comunicação, cientistas questionam a insuficiência de substâncias neuroativas como fator desencadeante dos sintomas depressivos. O estudo coloca em pauta não apenas a eficácia das terapêuticas exclusivamente medicamentosas, como abre passagem para o questionamento da própria hegemonia do discurso científico, que vem a relativizar só agora o que outras correntes de pensamento sempre afirmaram.





imagem: Ashley Mackenzie



Somos uma manifestação complexa da vida. Corpos inseridos e atravessados por um campo de afetos que produz linhas de forças, tanto no âmbito político e social, que nos circunda, como naquele que vai por dentro e nos constitui. Somos feitos de mundo, multiplicidades capazes de afetar e de ser afetados, produzir realidade e diferença a partir dos encontros que nos acontecem.


Tomando a inter-relação constitutiva entre todos esses âmbitos como ponto de partida, devemos no mínimo estranhar o fato de apostarmos tantas fichas numa atuação que se propõe a intervir nos componentes bioquímicos isoladamente, desconectando-os de nossos modos de vida. Assim, a busca por uma “pílula mágica”, capaz de blindar ou apaziguar a sensação de mal-estar que nos acomete, certamente não leva em conta o modo como toda a engrenagem social se articula à constituição das subjetividades.


Corpos saudáveis são entendidos como aqueles eficazes o suficiente para atender, no ritmo esperado e de forma competente, às demandas dessa orquestração maquínica. Qualquer desvio de rota deverá ser corrigido a tempo, eis porque o saber médico tem se deslocado cada vez mais da remissão de sintomas à uma atuação preventiva.


É preciso, então, enfrentar a questão: o que faz com que acatemos o discurso de estarmos em eterno estado de inadequação e em dívida frente a toda uma produção que gira em torno de certo ideal sociocultural?


Como parte dessa engrenagem, as manifestações de sofrimento também se tornam objetos a serem capitalizados pela lógica que alimenta o sistema de adoecimento e cura. Uma cura que passa, necessariamente, por nossa aderência a um discurso de que algo nos falta, algo este a que as “pílulas mágicas” poderiam solucionar.


As relações entre indústria farmacêutica e produção de discursos científicos assumem então um lugar de verdade que nos convoca a reformular o problema: a que(m) tem servido a emissão de diagnósticos e prognósticos de cunho científico? Quem se beneficia das prescrições de caráter medicamentoso? Ao que tudo indica, ao aderir a tal sistema de produção de doença e cura, tudo o que conseguimos é retomar nossas funcionalidades perdidas para continuar produzindo do mesmo modo e ritmo que nos fez adoecer: um ciclo vicioso.


Se de um lado nos cabe problematizar as práticas de medicalização da vida, que nos rouba a autonomia sobre nossos próprios corpos, delegando-a aos profissionais de saúde, é no mínimo interessante notar que, por meio de procedimentos de pesquisa e mensuração, é o próprio saber científico que põe em dúvida a eficácia de suas resoluções parciais.


O que importa é que eles se sentem bem - ideia retirada de um dos artigos que divulgaram a pesquisa em questão - tem o intuito de justificar o uso dos fármacos, mesmo que sua eficácia esteja longe de ser comprovada. A frase revela também nossa profunda incapacidade de fazer bom uso das dores, afetos inerentes à nossa condição de viventes.


A maneira com que as chamadas doenças mentais crescem em escala global nos mostra a necessidade de desenvolvermos uma visão abrangente e ecológica para todos os campos onde a vida acontece. Assim, cuidar das três ecologias - ambiental, social, e mental - como descreve Félix Guattari, nos ajuda a conceber as manifestações ditas depressivas como efeitos de nossos modos de vida: o que nos tem feito sofrer?


Torna-se necessário diferenciar as causas dos efeitos, localizando a depressão como manifestação da perda de um horizonte próprio de afirmação da vida. O que se perde aqui é um sujeito definido a priori, que passa a se confundir com a própria falta, agora a ser preenchida pela pílula, artifício quase mágico da técnica científica.


Vale lembrar que a ciência é também atravessada por relações de poder e disputas internas entre colegas, corporações e instituições, por vezes a serviço daquilo que Foucault chamou de biopoder: a capacidade de produzir e governar corpos dóceis e economicamente eficazes.


Em contraposição, acionamos o conceito de Gaia Ciência, criado por Nietzsche, um saber capaz de valorar a vida em suas N manifestações, sem julgá-la faltante em relação à universais absolutos. Aqui, afirma-se a vida em toda sua diferença e impermanência, uma ciência que caminha de mãos dadas com a arte e a filosofia, rumo a criação ativa e estilística de si.


A implicação ativa na tarefa de nos inventarmos talvez seja a mais urgente, começando por rever a máxima que diz da importância do sentir-se bem a qualquer custo. Como diz Nietzsche, o mais importante é sentir a vida tal qual ela se apresenta, aprendendo a extrair de nossas dores, a força que nos leva a criar caminhos interessantes e alternativos ao que nos enfraquece e de onde um processo terapêutico bem conduzido pode se tornar um importante aliado.







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